Governo usará mortes como saída para as crises

Por Denis Ometto, advogado, ambientalista e militante do PSTU em São José dos Campos.

FOTO: RICARDO MORAES EM NEXO JORNAL

A pandemia do SARS-COV-2 gerou efeitos únicos no Brasil. Não porque a doença causada por esse vírus tenha provocado sintomas diferentes por aqui, mas pela forma que os gestores públicos passaram a atuar em razão dela.

No início, alguns governadores e prefeitos optaram pela política de isolamento social e quarentena, com a suspensão das atividades econômicas não essenciais. Essa parecia ser a política mais acertada, considerando a velocidade de contágio do vírus, a inexistência de vacina e a incapacidade do sistema de saúde em atender a população infectada. Havia, ainda, os exemplos de países que implementaram essas medidas e alcançaram resultados bastante satisfatórios.

De outro lado, tínhamos o governo federal, que sempre minimizou os impactos da COVID-19 no Brasil, posicionando-se contrariamente à política de isolamento.

No entanto, passados mais de três meses do anúncio oficial da pandemia pela OMS, estamos vendo uma brusca mudança de comportamento daqueles que antes defendiam o isolamento, caminhando, pouco a pouco, para a política do governo federal, flexibilizando suas quarentenas, reabrindo comércio e mais alguns outros serviços.

Bastante estranha essa mudança de comportamento, principalmente porque a quantidade de infectados e mortos pela doença ainda cresce rapidamente e não há como prever quando começará a decrescer.

Imunização coletiva ou de rebanho

Ao que parece, a verdade é que o governo federal, e agora os estaduais e prefeituras, constataram de que o sistema público de saúde já não está suportando sequer o número atual de casos e não vai mesmo dar conta dos que virão.

Isso porque o SUS vem sendo precarizado e sucateado nos últimos anos, através das privatizações e terceirizações, sem contar o congelamento dos gastos públicos por 20 anos provocado pela aprovação, em dezembro de 2016, da EC 95, a qual, segundo estimativa do IPEA, retirará da saúde mais de R$ 700 bilhões. Se o sistema já estava deficiente e mal gerido antes da pandemia, agora piorou muito.

Em diversos hospitais públicos do país, a situação beira o caos. O aumento da procura pelos serviços provocados pela pandemia do novo coronavírus testa a já fragilizada capacidade do Sistema Único de Saúde (SUS), relatam servidores da área das cinco regiões do Brasil.

"A situação é de guerra", afirma Cleonice Ribeiro, diretora do Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde no Estado de São Paulo (SindSaúdeSP), em entrevista à DW Brasil. "Tem hospital que não tem sabão para lavar as mãos ou papel toalha para enxugar. Trabalhadores que atendem os pacientes não têm álcool em gel, óculos de proteção ou máscara", exemplifica.

A rede privada e de saúde suplementar também não vão suportar a demanda. A implantação de um leito de UTI custa cerca de R$ 180.000,00 e uma diária de um paciente em UTI, R$ 3.000,00 (UNICAMP).

Além disso, não dá para garantir quando surgirá uma vacina, se é que vai mesmo ser descoberta. Vamos lembrar que contra algumas outras doenças virais, como Febre Chikungunya, Hepatite C e AIDS, também não existe vacina.

Então, com esses dados em mãos, os governos em conjunto não vislumbraram nenhuma alternativa a não ser a imunização coletiva, ou, de rebanho.

Antes da pandemia, a expressão imunidade de rebanho chamava a atenção para o efeito de proteção que surge em uma população quando uma percentagem alta de pessoas se vacinou contra uma certa doença. Por obra da imunidade de rebanho, mesmo quem não está vacinado fica protegido do patógeno causador da doença. Exemplo clássico de vacina que produz imunidade de rebanho, quando 95% de uma população a recebeu, é a vacina contra o sarampo. Com 95% das pessoas imunizadas, o vírus não circula mais, a doença desaparece e quem não pode tomar a vacina fica protegido (Instituto Butantan).

O problema atual é estimar o percentual da população que precisaria contrair o vírus, para que mesmo quem não teve a doença deixe de correr risco de se infectar. Não há unanimidade, mas alguns pesquisadores estimam o número entre 60% e 80%. Assim, quando essa quantidade de pessoas já tiver contraído a doença e adquirido imunidade, o vírus não circularia mais e a doença desapareceria. No Brasil, o número de infectados deve assim ser algo entre 126 milhões e 168 milhões de habitantes. Considerando que a taxa de letalidade do coronavírus no país é uma das piores do mundo, chegando a 7% dos infectados (ECDC), podemos estimar que entre 8,5 milhões a 11 milhões de pessoas morrerão até o final da pandemia.

Lamentavelmente, tudo leva a crer que é para esse cenário que estamos rumando, considerando não apenas as flexibilizações do isolamento social, mas também a falta de condições para que uma boa parte da população de trabalhadores se isole, a ausência de fiscalização eficaz contra a quebra do isolamento e até o incentivo a aglomerações, como abertura de parques e outros locais públicos e privados, carreatas e etc..

Por isso, não é correto chamar nossos governantes de ignorantes, insensíveis ou irresponsáveis. Eles sabem bem o que estão fazendo.

A necropolítica aplicada à pandemia

Os governos trabalham com esse grande número de mortos pela COVID-19 no país, para supostamente salvar os outros restantes. Mas, não será do médico, à beira do leito, a escolha de quem vai morrer.

Essa escolha já foi feita bem antes, a partir da aplicação da necropolítica à pandemia.

O termo necropolítica apareceu em 2003 e consiste no conjunto de políticas de controle social através da morte. Trata-se de um conceito definido pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, professor na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul, em ensaio de sua autoria (Necropolítica - publicado no Brasil pela Editora N-1 Edições).

Nesse trabalho, o professor parte ideia de que a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer, razão pela qual matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. E conclui que ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder. Logo, neste sentido, a soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é.

Não é à toa, portanto, que o combate ao coronavírus é comparado a uma guerra. O custo social existente antes, durante e depois da pandemia será pago por uma grande parte da população não apenas com desemprego, miséria e fome, mas com a própria vida daqueles considerados descartáveis pelo Estado.

Essa não é uma política derivada da ignorância e/ou obscurantismo, que leva ao descontrole. Muito ao contrário, é deliberada, planejada e conscientemente aplicada.

É emblemática, nesse sentido, a declaração de uma assessora do Ministro Paulo Guedes: É bom que as mortes se concentrem entre os idosos… Isso melhorará nosso desempenho econômico, pois reduzirá nosso déficit previdenciário (Revista Fórum, 26.05.2020).

Uma vez que a imunização de rebanho acarretará a morte de cerca de 5% da população do país e considerando o histórico classista e racista do Brasil, tudo nos leva a crer que o governo aproveitará a pandemia para matar mais negros, indígenas, idosos e pobres. Essa é a escolha de quem vai morrer. E essa escolha, sob o ponto de vista marxista, recai sobre um excedente de mão de obra improdutiva, ou seja, aquela em que não se pode extrair mais-valia e, consequentemente, lucro.

Uma peculiaridade ainda mais cruel, no caso da pandemia, é que, com as ações e omissões que incentivam o contato entre as pessoas, o governo acaba terceirizando, nas próprias vítimas, o extermínio da vida das outras.

A luta que se apresenta, em um primeiro plano, é pelo direito de respirar. Permanecer vivos e com saúde é, assim, um ato de rebeldia. Devemos exigir maior investimento no SUS, para sua plena eficiência, e condições dignas para que toda a população possa isolar-se, sem prejuízo de trabalho, emprego e renda, entre outras tantas.

Certamente, o capitalismo encontra nesse cenário macabro uma saída para a crise econômica que se aprofunda desde 2008 e para a presente crise sanitária. Diante disso, devemos deixar de chamar os governantes de irresponsáveis. Na verdade, eles são genocidas frios e calculistas, sociopatas da pior espécie.

Fora Bolsonaro e Mourão!



FONTES CITADAS:

1. IPEA:- Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/160920_nt_28_disoc.pdf

2. Deutsche Welle: https://www.dw.com/pt-br/sucateado-sus-vive-caos-em-meio-%C3%A0-pandemia/a-52812503

3. UNICAMP: https://www.unicamp.br/unicamp/coronavirus/quanto-custa

4. Instituto Butantan: http://coronavirus.butantan.gov.br/ultimas-noticias/o-que-e-imunidade-de-rebanho

5. ECDC – Centro Europeu para Prevenção e Controle de Doenças – em: https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2020/05/05/interna_internacional,1144336/coronavirus-brasil-tem-uma-das-maiores-taxas-de-letalidade-do-mundo.shtml

5. ACHILLE MBEMBE,

Filósofo e cientista político camaronense, é formado em história na Sorbonne e em ciência política no Instituto de Estudos Políticos. Lecionou nas universidades Columbia, Yale e Duke; é atualmente professor na Universidade de Witwatersrand, em Johanesburgo. É conhecido pelo ensaio "Necropolítica", publicado em 2003, em que discute como governos escolhem quem vive e quem morre; escreveu também sobre o pós-colonialismo no continente africano.

6. Revista Forum: https://revistaforum.com.br/politica/coronavirus-assessora-de-guedes-enxergava-morte-de-idosos-como-positiva-para-reduzir-deficit-previdenciario/?fbclid=IwAR3MVKkS5qfBdiOqd6Y9ZKHkbyp_g4wzoDS9p5hlCuQFHTFe-pWBpgZGrR0

7. ACHILLE MBEMBE, “O Direito Universal à respiração” (http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/598111-o-direito-universal-a-respiracao-artigo-de-achille-mbembe


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