O massacre de Charlie Hebdo e o aumento da islamofobia


20/1/2015 - Por May Assir e Gabriel Huland (Tradução: Helena Souza)

Paris sofreu na quarta-feira, 11 de janeiro, o que se considera o pior ataque terrorista na França desde 1961, quando a OAS (Organização de l'Armée Secreta, uma organização de extrema direita, contrária à independência da Argélia) pôs uma bomba em um trem da linha Paris-Estrasbourg, matando 28 pessoas.

O assassinato de quase toda a redação da revista satírica francesa Charlie Hebdo (12 pessoas) foi denominado pela imprensa parisiense como o 11/09 francês, do qual se poderá falar de um antes e um depois. Um jornalista ou chargista nunca deve estar sob ameaça de morte, ainda que não tenhamos acordo com as suas opiniões, e sim sob crítica e debate.

Os terroristas, que afirmaram pertencer à al-Qaeda, atiraram não só contra os doze que estavam na redação, mas sim contra toda a comunidade muçulmana na França e na Europa. Acenderam o estopim da legitimidade da islamofobia e novas "leis antiterror" em todo o velho continente.

Os líderes dos principais países imperialistas, com Hollande na liderança, já condenaram o ataque, em nome da "liberdade de expressão e os valores republicanos". A extrema direita racista e xenófoba, que saiu fortalecida das eleições europeias, se lançou na França, Alemanha, Inglaterra e Holanda exigindo medidas repressivas contra a imigração e a favor da pena de morte.

O atentado abre um novo cenário, que será manipulado pelos governos e pela extrema direita, para atacar os direitos fundamentais dos mais oprimidos da classe trabalhadora europeia, os imigrantes. O mundo civilizado deverá "proteger-se da barbárie jihadista" e para isso alguns terão que pagar o pato e servir como um bode expiatório. Tempos difíceis pela frente.

A hipocrisia dos governos imperialistas
Governos de todo o mundo, incluindo os EUA, a França e o Estado Espanhol, fazem declarações "em defesa da liberdade de expressão e tolerância". Na verdade, o primeiro-ministro francês chamou o povo francês a levantar a voz pelos "valores da democracia, da liberdade e do pluralismo", além de defender a "unidade nacional" contra o terrorismo. Hollande, que se gaba de democrata, é quem mantém tropas no Mali e quem não permite que as mulheres muçulmanas usem o véu nas escolas públicas francesas.

Por sua parte, o governo do PP, que proibiu o referendo na Catalunha, aprovou a lei da mordaça e permite centenas de despejos por dia, também aderiu ao movimento da "liberdade de expressão". Rajoy foi, junto com Merkel, Cameron, Renzi, Hollande, Netanyahu e outros chefes de Estado, na manifestação contra o terrorismo realizada em Paris, no domingo passado. No Estado espanhol, a primeira medida anunciada pelo ministro do Interior, Jorge Fernandez Diaz, depois dos atentados, foi aumentar o nível de alerta antiterror, de grau 2 para 3. Isto significa mais policiais nas ruas.

A bandeira da "liberdade" seletiva também foi agitada por Netanyahu, primeiro-ministro do Estado de Israel, afirmando que "o terrorismo procura destruir a cultura da liberdade", quando o mesmo é representante de uma colônia que só na última operação militar contra Gaza matou mais de 2000 palestinos.

A reação da extrema-direita europeia
A população imigrante, não só tem que resistir aos ataques por parte desses governos, também são responsabilizados pelos partidos de extrema direita "pela falta de trabalho" e aumento da insegurança. Marine Le Pen, cujo partido está na liderança das intenções de voto na França, já em 2013 declarava que "não há lugar para os imigrantes na Europa." Além de defender um referendo sobre a pena de morte, abolida em 1981 pelo presidente François Mitterrand, a líder da Frente Nacional declarou que "o Islã radical é uma ideologia mortal."

Nigel Farage, líder do partido britânico UKIP, disse que "a obsessão com a promoção de uma sociedade multicultural na Europa criou uma quinta coluna no Ocidente". Geert Wilders, líder xenófobo holandês, disse que o Islã "visa submeter todo o mundo à Sharia", e que o que aconteceu em Paris "é apenas o começo."

No ritmo de crescimento desses partidos aumentam os movimentos anti-islâmicos como o movimento Pegida  (Patriotas Europeus contra a islamização do Ocidente), na Alemanha, que em sua última manifestação, antes do atentado em Paris,  conseguiu reunir 18.000 participantes. Pegida não é o único partido xenófobo na Alemanha. O NPD e o recentemente criado Alternative  für Deutschland (AfD) também atuam livremente no país, participando inclusive, nas eleições. AfD tem sete deputados no Parlamento Europeu.

Ataques islamofóbicos e medidas repressivas na Europa
Os ministros do Interior de vários países europeus e representantes dos EUA, Turquia, Israel, entre outros, reuniram-se na capital francesa e anunciaram as primeiras medidas de um plano "antiterrorismo" que na realidade significará um grande ataque contra às liberdades democráticas e aumento da islamofobia.

Ajustaram "controles profundos" de alguns passageiros e coordenação com empresas de internet para impedir conteúdos relacionados com o terrorismo. Em 18 de fevereiro, será realizada em Washington uma cúpula internacional contra o terrorismo. O ministro do Interior francês defendeu mais restrições no sistema Shengen para triagem de passageiros nas fronteiras.

Desde o atentado foram atacados na França mais de três locais dirigidos por muçulmanos e na manhã de sábado, 11 de janeiro, uma das mesquitas em Madrid amanheceu pintada com mensagens exigindo que os muçulmanos saiam da Espanha e chamando-os de "cães".

Diante desse aumento do racismo ressaltamos a importância de diferenciar a população muçulmana dos fanáticos fascistas que entraram e dispararam indiscriminadamente contra qualquer um, que tentasse impedir, na sede da revista. Tanto que um dos policiais mortos, Merabat Ahmed, que defendia a revista, era um muçulmano. Esta distinção é tão evidente que já estão convocadas dezenas de manifestações, em toda a Europa, de grupos islâmicos condenando o atentado.

Lembramos também que os que mais sofrem este fascismo intolerante são os milhões de muçulmanos aterrorizadas pelo Estado Islâmico no Iraque, por Boko Haram, que mataram recentemente mais de 2.000 pessoas na Nigéria, ou os governos que preferem matar toda a sua população ao invés de render-se à luta revolucionária dos povos, como na Síria ou no Egito. Muitos dos que são torturados por agentes da CIA em Guantánamo ou os que morrem nas mãos do Estado de Israel são muçulmanos.

A ocupação colonial francesa no norte da África e no Oriente Médio
É impossível entender os acontecimentos da última quarta-feira, sem voltar atrás e analisar a política do império colonial francês após a Primeira Guerra Mundial, quando a Inglaterra e a França, dividiram o Oriente Médio nos acordos Sykes-Picot. Marrocos, Argélia, Síria e Líbano (que não existia até então) ficaram sob ocupação militar francesa. Sua política foi a de estabelecer governos autoritários, não permitir o desenvolvimento independente desses países e colocar toda a sua economia a serviço dos interesses da metrópole.

Durante a guerra de libertação da Argélia (1954-1962), estima-se que cerca de um milhão de argelinos foram cruelmente assassinados pelo exército francês, que enviou mais de 500.000 soldados para o país, com a desculpa de que pertenciam ao FLN (Front de Libération Nacional) ou colaboravam com a resistência. A emblemática Batalha de Argel foi uma das mais sangrentas da história recente e uma das práticas comuns das forças francesas era desfilar pelas ruas da capital argelina com as cabeças dos chefes dos guerrilheiros da FLN que eram decapitados.

A OAS, citada anteriormente, foi uma organização terrorista francesa, de extrema direita, liderada pelo general Raoul Salan. Chegou a contar com mais de mil homens armados e 3000 membros na Argélia e na França. Lutava contra a independência da Argélia e foi responsável por um grande número de ataques contra civis desarmados, assim como a instituições francesas e argelinas na Europa e no Magrebe.

Nada disso justifica o atentado, mas ajuda a compreender a mentalidade de muitos jovens muçulmanos, que, na ausência de alternativas de luta coerentes são presas fáceis para os grupos terroristas que afirmam agir em defesa do Islã, contra a barbárie ocidental.

Eu sou Charlie?
Milhares de ativistas mostraram sua solidariedade com as vítimas do atentado publicando "Eu sou Charlie" em suas redes sociais. Repetimos a importância de que os/as trabalhadores/as condenemos este tipo de ato mostrando nossa máxima repulsa.

Condenamos o assassinato dos chargistas, mas não somos o conteúdo de sua revista. Precisamente porque estamos de acordo com a liberdade de expressão criticamos os quadrinhos e capas islamofóbicas que foram publicados pela revista na França, onde os muçulmanos representam cerca de 10% da população. Mesmo como sátira consideramos que alguns destes quadrinhos (por exemplo, um egípcio que sai sendo baleado com um Alcorão em frente, fazendo alusão ao massacre cometido pela junta militar egípcia em 2013) são ofensivos e fomentam o racismo. Assim, mesmo condenando o ataque, "não somos Charlie".

Não à unidade nacional
A luta contra o fanatismo religioso é inseparável da luta contra o racismo, contra o colonialismo, contra o chauvinismo e o patriotismo, contra o militarismo e o uso da polícia contra os pobres, os jovens e os imigrantes. Também é inseparável da luta contra a opressão das minorias, contra todo conservadorismo e reações que o capitalismo alimenta.

A batalha contra o terrorismo e a islamofobia não pode ser levada através da realização de "unidade nacional", como propõe Hollande e a UE, nem com um governo que continua a ofensiva contra os trabalhadores, reforça medidas de exclusão da população imigrante, aplica cortes de direitos e flexibiliza o mercado de trabalho.

Só a mobilização dos trabalhadores e da juventude pode defender as liberdades democráticas e derrotar o terrorismo. A unidade das organizações do movimento operário deve, também nesta questão, impor-se, através da criação de um campo independente do governo, das instituições da V República e dos partidos da burguesia.

Diante do aumento da islamofobia, gritamos: nativa ou estrangeira, a mesma classe operária!

Texto publicado no site em espanhol da LIT-QI